domingo, 12 de dezembro de 2010

O Anarco-cristianismo de Leon Tolstoi

"Os anarquistas estão certos [...], na negação da ordem existente, [...]. Erram somente em pensar que a anarquia possa ser instituída por uma revolução. Ela vai ser instituída somente quando houver mais e mais pessoas que não exigem a proteção do poder público [...]. Só poderá haver uma revolução permanente se esta for uma revolução moral: a regeneração do homem interior."
Ensaio A Anarquia (1900) Leon Tolstoi


Ainda sob influência do livro “A História das Idéias e Movimentos Anarquistas – Vol.1 A Idéia” de George Woodcock – livro que apresenta em ordem cronologia e com uma riqueza de detalhes históricos admirável a evolução da filosofia política anarquista, descrevendo uma breve 'biografia de idéias' dos principais teóricos desse movimento, finalizando o trabalho com a de Leon Tolstoi, com o capítulo intitulado “O profeta” – o qual li em novembro, acabei por continuar a saga dos anarquistas lendo, desta vez um romance: “A Morte de Ivan Ilitch” de próprio Leon Tolstoi. O livro foi publicado pela primeira vez em 1886 e é uma das obras-primas de sua ficção, escrito pouco depois de sua conversão religiosa ao cristianismo no final de 1870.

Esta foi a primeira obra completa que li de Tolstoi. Já tinha lido alguns contos e o admirava principalmente pelas obras adaptadas ao cinema, em especial uma obra baseada no conto “A Nota Falsa”, o filme “O Dinheiro” de Robert Bresson de 1983.

Vários aspectos me interessaram na obra e na pessoa do Leon Tolstoi. É sabido que ele é reconhecido com um dos maiores, se não o maior, romancistas que este mundo já viu. Duas de suas obras, o imenso painel-afresco histórico-social, sua maior obra, “Guerra e Paz” e o grande romance social e psicológico “Anna Kariênina”, são obras-primas da literatura universal, unanimemente apontadas como dois dos maiores romances de todos os tempos, e este “A Morte de Ivan Ilitch” é considerada por muitos a novela mais perfeita da literatura mundial. Entretanto não é este aspecto que mais me chamou a atenção, mas algo relacionado a sua personalidade: sua posição anarquista e cristã. Talvez até mesmo ele sentisse isso olhando criticamente sua vida, pois, embora extremamente bem-sucedido como escritor e famoso mundialmente, Tolstoi atormentava-se com questões sobre o sentido da vida e, após desistir de encontrar respostas na filosofia, na teologia e na ciência, deixou-se guiar pelo exemplo da vida simples dos camponeses, a qual ele considerava ideal. A partir daí, teve início o período que ele chamou de sua "conversão".

Tolstoi converteu-se ao cristianismo, seguindo seus ensinamentos, mas os interpretando ao pé da letra, tornando seu cristianismo humanista, ao contrário da abordagem moderna, que conforme aprestada por Nietzsche em seu “O Anticristo” é niilista por essência. Essa visão cristã exacerbada aos moldes do cristianismo primitivo é que permite a aproximação entre duas filosofias tão antagônicas como cristianismo e anarquismo.

Vislumbra-se a possibilidade de um anarquismo em seu cristianismo logo na postura humanista adotada: o escritor possuía uma religiosidade sem os dogmas irracionais, que, para ele, serviam para dominar o povo, e eram, ou são, alguns dos conceitos mais caros à Igreja, convergindo com as idéias de Nietzsche. Considerava e seguia a doutrina de Jesus, mas achava impossível, por exemplo, que Jesus pudesse ser um homem e um Deus, ao mesmo tempo. Para Tolstoi, Deus estava nas próprias pessoas e em suas ações.

Em suas atitudes e seus escritos após sua conversão vê-se o anarquismo de forma mais clara: tornou-se vegetariano e passou a vestir-se como camponês, convenceu-se de que ninguém deve depender do trabalho alheio e passou a limpar seus aposentos, lavrar o campo e produzir as próprias roupas e botas e, por fim, decidiu abrir mão de receber os direitos autorais dos livros que viria a escrever.
Porém, não conseguia alcançar a simplicidade em que acreditava, isso talvez pela culpa de ter sido um rico membro da nobreza russa, chegando a acreditar que era indigno da riqueza herdada.

Mas é em sua morte que vemos personificado seu mais profundo anarquismo e o quanto este fazia parte de sua doutrina cristã: sua família, especialmente a mulher Sônia, cobrava-lhe os luxos e riquezas aos quais estavam acostumados. Os filhos davam razão a mãe, a quem Tolstói amava e que ameaçava se matar quando o escritor fazia menção de abandonar a casa. Aos 82 anos de idade, Tolstoi decide, enfim, fugir de casa e abandona a família para largar aquela vida na qual ele não mais acreditava. Durante alguns dias a fuga foi um sucesso, porém, devido a sua preferência em viajar em vagões de terceira classe, onde havia frio e fumaça, o já debilitado escritor contraiu uma pneumonia, que foi se agravando rapidamente. No dia 20 de novembro de 1910, o velho escritor morreu durante a fuga em uma estação de trem.

Esses últimos dias de sua vida lembram muito os de Ivan Ilitch, quando um homem procura um sentido para sua existência ao vislumbrar a morte iminente, repudiando o ambiente em que viveu e estabeleceu-se, o qual acreditava, até então, ser o mais correto e feliz.

Sobre o livro:
“A Morte de Ivan Ilitch”
Autor: Leon Tolstoi
Tradução: Vera Karam
Coleção L&PM Pocket, vol. 16
Ilustração da capa: Obra de Frederic Bazille, “Monet depois de seu acidente” (1866)
Preço médio: R$ 12,00

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