A partir da abordagem de fusão de
horizontes enquanto momento de aplicação, que também mostra que de acordo com a
história da hermenêutica é possível abordar um conceito pleno de hermenêutica
composto por três tipos de hermenêuticas distintas: filológica, teológica e
jurídica, Gadamer destaca o caráter aplicacional da hermenêutica teológica e
principalmente da hermenêutica jurídica, e conclui que também o hermeneuta da
história a todo o momento que interpreta, aplica, na medida em que supera a
distancia temporal entre ele e o texto, visto que toda compreensão envolve um
aspecto de aplicação. Em sua essência a experiência hermenêutica envolve três
momentos, um tão originário quanto o outro, e que se dão por inter-relação
sempre: compreensão, interpretação e aplicação. É essencial que ao compreender
e interpretar implique-se sempre uma aplicação, ou ao menos uma articulação
para uma aplicação. A aplicação remete a concretude do compreender, pois o
aplicar se dá a cada momento e em cada situação concreta, e sempre de uma
maneira nova e distinta.
Partindo do princípio de aplicação
que está fundado em todo compreender, Gadamer destaca a validade hermenêutica
de Aristóteles, a partir de sua ética. Em oposição à filosofia intelectualista
socrático-platônica, que submete o saber prático ao saber teórico, Aristóteles
desenvolve sua ética, onde o bem, ou a virtude moral, não são universais e
imutáveis; ou seja, para Aristóteles, não existe bem, virtude, ou excelência na
teoria pura, a margem de um saber que visa à concretude da situação. O destaque
aqui é dado a dissociação do divino e do humano, onde a teoria se apresenta
como algo imutável e universal – típico dos deuses –; e a prática é aquilo que
pode ser de outro modo, isto é, sua essência é vinculada ao mundo concreto dos
seres humanos. No livro II de sua Ética a Nicômaco, Aristóteles aborda o
termo ethos e explicita seu caráter
prático, dissociado de qualquer natureza e assim também de qualquer pretensão
de universalização absoluta:
“a virtude moral é adquirida em resultado do hábito, donde
ter-se formado o seu nome (ethiké)
por uma pequena modificação da palavra ethos
(hábito). Por tudo isso, evidencia-se também que nenhuma das virtudes morais
surge em nós por natureza; com efeito, nada do que existe naturalmente pode
formar um hábito contrário à sua natureza. [...] Não é, pois, por natureza, nem
contrariando a natureza que as virtudes se geram em nós. Diga-se, antes, que
somos adaptados por natureza a recebê-las e nos tornamos perfeitos pelo
hábito.” (ARISTOTELES, 1981, p.27)
As virtudes morais não se importam
com as leis universais da natureza, seu sentido válido se dá por seu
reconhecimento como mutáveis e em vista de uma certa “regularidade limitada dos
estatutos humanos e de suas formas de comportamento” (GADAMER, 2004, p.412).
A atualidade hermenêutica de
Aristóteles está fundada na relação que sua ética tem com o próprio conceito de
ser-ai de Heidegger. Aqui cabe uma
retomada deste conceito: o ser-ai, ou seja, o ser enquanto abertura, é o
existencial fundamental em Heidegger, e se dá na abertura em três estruturas
existenciais distintas igualmente originárias: a disposição, o compreender, e o
discurso. Em uma primeira aproximação, a abertura enquanto disposição, dado a
sua estrita relação com o tempo – visto que ela (a disposição) se dá em vista
de nosso passado, isto é, de nosso sido; pois somos sempre já afetados pelo
mundo (aqui ‘mundo’ enquanto mundanidade, ou totalidade de remissões, não um
mundo no seu sentido ôntico, ou seja, enquanto ente) – mostra a quantas anda o
ser e de que modo ele está acostumado com o mundo, e se manifesta através de
uma disposição de humor. O compreender se apresenta como um existencial tão
originário quanto a disposição, visto que “toda a disposição sempre possui a
sua compreensão, mesmo quanto a reprima” (HEIDEGGER, 2009, p.202); no entanto,
ao contrário da disposição, a orientação do compreender está voltada para o
futuro, isto é, para nosso por-vir. Portanto, compreensão se apresenta como
nosso poder-se enquanto condição ontológica da interpretação. É em vista desse
conceito de ser-ai que Gadamer trabalhar a questão de Aristóteles, numa análise
do comportamento hermenêutico do ser-ai, pois ele não está fundado nem no
âmbito essencialmente teórico, nem no âmbito essencialmente prático. A questão
é a seguinte: como nos comportamos em relação aos outros entes (coisas /
objetos)? Para Heidegger, em sua análise do ser-ai, não há objeto. O termo
heideggeriano que mais se aproxima de objeto é o “ser simplesmente dado”. Essa
abordagem é tomada, pois como o ser-ai nunca se apresenta como um sujeito para
opor-se a um objeto, sua essência é antes de tudo ser-no-mundo. Uma tomada
puramente objetiva aqui encerraria em si uma contradição, visto que foi
explicitado a oposição das abordagens “sujeito/objeto” e “ser-no-mundo”. O
ser-ai trata do objeto enquanto estando “diante da mão”. Daqui para frente, ao
usarmos os termos “simplesmente dado” e “diante da mão” estaremos sempre
tratando da relação do ser-ai com as coisas do mundo. Acontece que existe um
outro tipo de relação que temos com os outros
mais originária que o do “ser diante de mão”: é a do “utensílio”
enquanto “à mão”, ou seja, em sua manualidade. A relação entre esses conceitos
heideggerianos e outros conceitos aristotélicos, que ainda serão retomados,
está apresentada no quadro abaixo:
MAIS
ORIGINÁRIOS
|
MENOS
ORIGINÁRIOS
|
|
HEIDEGGER
|
Utensílios
|
“Objeto”
|
Manualidade
|
Simplesmente
dado
|
|
À mão
|
Diante da mão
|
|
ARISTÓTELES
|
Poiesis (Produção)
|
Episteme
(Ciência)
|
Techne (Arte / Técnica)
|
Sophia (Sabedoria)
|
A tabela acima mostra que tanto para
Aristóteles quanto para Heidegger existe um modo de tratar as coisas do mundo
mais originário que a ciência que objetiva a coisas e também que o próprio
saber teórico puro, proveniente da sophia.
Em Aristóteles a sophia tem primazia
conceitual a episteme e a phronesis tem primazia ao conceito de
techne. Phronesis é a excelência do
saber prático e é comumente traduzido por prudência. No entanto tanto a teoria,
quanto a prática se dão sempre no Logos,
mas já em Aristóteles existiria, o que poderemos chamar aqui de um outro tipo
de consciência, que está acima do Logos:
o Nous, que Heidegger entende como sendo a estrutura prévia da compreensão. Por
sua vez, os famosos conceitos de potencia e ato de Aristóteles, aqui são tomados
como as condições internas que permitem transições; é o modo que me comporto
numa situação concreta que efetiva o ato. É pelo compreender que a situação
concreta aparece, e o bem, como constituinte do saber prático, só se mostra na
situação concreta. O bem agir, dado sua essência de ação, é sempre um novo bem
a cada situação concreta, visto que na situação concreta a urgência á
fundamental, pois exige sempre uma nova tomada de decisão. Todos esse conceitos
relacionados à prática demonstram sua oposição categórica para o saber teórico
e desvincula um de outro na medida que mostra que não é possível utilizar-se de
construtos teóricos para mandar no agir, nem mesmo em vista de um método de
ação. Não existe nenhum método para a vida moral; nem mesmo o hábito, destacado
pelo conceito de ethos, é um método;
pois por mais que se conheça os pressupostos de uma situação a partir de
vivencias anteriores, a decisão, ou o agir, é sempre uma nova situação; ou
seja, só a disciplina não dá conta.
Voltando a Heidegger, com o intuito
de ressaltar a importância da abordagem gadameriana sobre a validade
hermenêutica de Aristóteles, tomemos o conceito de “em vista do que”, ou “em
virtude de que” (Worum-willem). A questão proposta por Heidegger é a de que
nosso ser não pode ser analisado nem como utensílio (à mão), nem como objeto
(ao alcance na mão). Heidegger nos parágrafos 29 e 30 de Ser e Tempo trabalha com o conceito de “angústia”: para ele não nos
angustiamos com os entes, mas com o mundo (totalidade de remissões); ou melhor,
nos angustiamos com o nosso próprio ser-no-mundo. O mundo enquanto totalidade
de remissões produz uma série de “para-quês”, ou seja, para que o utensílio
serve; o problema é que não encontramos um “em virtude de que” esse “para-quês”
se organizam. E é na angustia, na pergunta pelo “em virtude de que”, que o
mundo é reduzido a um “nada” (nicht).
O nada surge exatamente do conceito de ser-ai enquanto projeto, visto que nele
não há encerrado nada de essencial. No entanto o caráter positivo da angustia é
que é nela que nosso ser se abre para se compreender mais propriamente, pois
compreender que somos um nada é compreender que somos um projeto, ou seja,
somos em movimento. Neste ponto Heidegger se apropria da abordagem nietzschiana
da interpretação a partir da finitude, dada como constituinte de nosso ser-ai.
A diferenciação é que para Heidegger, Nietzsche com sua “vontade de potencia”
encerrou o último paradigma da metafísica e inclusive afirma, talvez para o
desgosto de seu antecessor, que ele seria, por conta disso, o mais irrestrito
platônico da história da filosofia (HEIDEGGER, Sem data). Outro termo que
ressalta o caráter de que nossa vida, tomada mais propriamente, não possui
consolo metafísico algum, ou seja, não pode ser objeto de construto teórico, é
o abismo (abgrund) – tradução
literal: sem chão – que aparece em Kierkegaard: para esse existencialista
cristão, na angústia somos levados a tomar uma decisão: ou você salta, ou
você recua.
A retomada da questão aristotélica
passa por essas observações, pois Aristóteles tem um termo concorrente ao “em
virtude de que” heideggeriano: traduz-se da mesma forma: “em virtude de que” (houheneka). Em Aristóteles o conjunto de
todos os “para-quês”, ou melhor o seu “em virtude de que” é a felicidade (eumaimonia). Acontece que mesmo que
Aristóteles admita que seja possível atingir a excelência em ambos os campos
(teórico e prático), é possível tomar uma leitura de Aristóteles onde no campo
da prática é que a felicidade se dá, pois a excelência da prática só se dá na
prática, e ela, com já mencionada, é a phronesis.
A virtude prática é a ação (práxis) e a phronesis,
como prudência é a ação reiterada; ou seja, é preciso manter certa disposição,
para afirmar a virtude a todo tempo e a cada situação nova. A questão, que já
se mostrava nas digressões a cerca da angústia heideggeriana, é que de antemão,
o que é correto fazer, não é dado; é necessário saber de novo o que fazer,
enfrentar novamente os desafios. Heidegger traduz o termo phronesis como “consciência”, seu intuito é atentar para a
necessidade de se atender o clamor da consciência. Aqui consciência não é
tomada como apenas uma substância pensante, é mais que isso, é um conhecimento
de nosso próprio ser. Por isso a phronesis
não pode ser esquecida; ou você a tem, ou não a tem; o saber que diz respeito a
ela não é de memória, e nem pode, pois ele é sempre novo a todo o momento. A phronesis é a própria consciência em
movimento. Estar consciente é portanto perceber-se a si mesmo, e tornar a ação
transparente é fazer com que eu perceba mais propriamente meu próprio ser.
O objetivo de Gadamer ao retomar
Aristóteles é demonstrar que toda e qualquer ciência do espírito não pode
utilizar do paradigma do saber teórico em primazia ao prático. Na Grécia antiga,
antes mesmo de Aristóteles, o saber teórico era vinculado ao saber matemático,
ou seja, algo imutável e perene – o próprio pitagorismo é exemplo dessa
relação; como uma das influencias a Platão (filosofo intelectualista), o
pitagorismo tomava os números como tendo um caráter divino. As ciências do
espírito não compartilham dessa abordagem, pois tratam daquilo que pode ser de
outro modo, ou seja, elas se apresentam como ciências morais, isto é: seu
objetivo é o saber que o homem tem sobre si mesmo. Dada a característica
hermenêutica do nosso próprio ser-ai, já destacada acima, fica claro que ao
analisarmos qualquer assunto que diz respeito diretamente ao homem é necessário
tomarmos a abordagem aristotélica da prática, pois como ao contrário da techne que produz a partir de matérias
dados, a phronesis, sem material, só
pode produzir o próprio homem. O homem em formação, por meio da phronesis, produz a si mesmo.
Aqui Aristóteles se opõe, via
Gadagmer, a uma abordagem kantiana, que a meu ver tem um fundo platônico, pois
o apelo do primeiro é para a concretude de nossa vida cotidiana e do segundo
para um formalismo; no que diz respeito à abordagem, a de Aristóteles é
claramente hermenêutica e a de Kant é a de fundamentação teórica. Aristóteles
demonstra a relação que a técnica tem com o saber moral e estritamente com o
direito, pois assim como o artesão que usa dos materiais disponíveis, e só na
aplicação a um caso particular é que ele os adequa, e a cada vez de uma forma
nova, o jurista também adequa a lei, que é universal, a situação concreta, que
é particular: a adequação é a verdadeira ação do direito. O termo que designa
essa adequação já está em Aristóteles: equidade (epieikeia). Esse termo caracteriza a própria adequação da lei a
cada caso, pois ser justo não é ser sempre o mesmo. A hermenêutica jurídica,
que tem importância como paradigma a ser seguido pelas ciências do espírito, possui
como característica primordial a aplicação da lei, que é sempre abstrata e deve
ser adequada a situação concreta por meio da equidade. A equidade deve ser
portanto uma virtude do bom juiz.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS:
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Abril Cultura; São Paulo. 1978
GADAMER,
Hans Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica
filosófica. 6. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora
Universitária São Francisco, 2004.
HEIDEGGER,
Martin. Ser e tempo. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 2009.
HEIDEGGER,
Martin. A doutrina de Platão sobre a verdade. Disponível em: http://moodle.ufsc.br/mod/resource/view.php?id=268993.
jtadeuoli@hotmail.com
ResponderExcluirbom texto
ResponderExcluir