Vincent Van Gogh, O Par de Sapatos, 1886 (Óleo sobre tela)
O sapato é ainda
pensado aqui como instrumento (utensílio), mas ele não se mostra mais via o
longo e penoso caminho trilhado por Ser e
Tempo: de um “ser-a-mão”, para, ao se quebrar, ao se retirar de sua
mundanidade, passar a “ser-diante-da-mão”. A obra de arte diz mais que a mera
objetivação do instrumento: ela inaugura um mundo. Vejamos:
“Na obscura intimidade do oco do
sapato está inscrita a fadiga dos passos do labor. No peso rude e sólido do
sapato está contida a lenta e teimosa marcha através do campo, ao longo dos
sulcos sempre semelhantes, estendendo-se ao longe sob o vento. No couro reinam
a umidade e a riqueza do solo. Sob a sola encontra-se a solidão do caminho do campo
que se perde quando a noite cai. Nesses sapatos vibra o apelo silencioso da
terra, seu dom silencioso do grão que amadurece, sua secreta recusa de si mesmo
no árido pousio dos campos invernais. Por meio desse instrumento perpassa a
muda preocupação com a segurança do pão, a alegria sem palavras de novamente
sobreviver à escassez, o frêmito do nascimento iminente, o tremor diante da
morte que ameaça. Esse instrumento pertence à terra, e está ao abrigo do mundo da
camponesa. No seio desse pertencimento protegido, o instrumento repousa em si
mesmo.” (HEIDEGGER, Hw, p.23)
Para
compreender o ser-obra da obra é necessário pôr-se na experiência pensante do circulo
hermenêutico, que não mais, a partir de um princípio filosófico, aponta o que é
obra de arte e o que não é, via dedução; bem com não parte da reunião de diversas
obras para assim buscar um conceito de obra de arte, via indução. Por mais que
esse mundo inaugurado possa parecer subjetivo, é necessário atentar para fato
de que para entrarmos no circulo e não cairmos nas garras de concepções puramente
estáticas ou filosóficas, temos que, em primeiro lugar, realizar a experiência
da obra via a própria obra. É somente a partir dela que o mundo se funda.
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