segunda-feira, 9 de julho de 2012

FOUCAULT, O FILOSOFO DA CONCRETUDE

Vinicius Nesi
Prof.° Dr. Selvino J. Assmann
UFSC – Universisade Federal de Santa Catarina
Filosofia – Filosofia Política II
10/07/2012


RESUMO: O presente trabalho visa estabelecer relações entre a abordagem filosófica do filosofo francês Michel Foucault e o filosofo alemão Martin Heidegger, a partir dos seguintes trabalhos: O Sujeito e o Poder (Foucault); Totalitarismo ou biopolitica do filosofo italiano Roberto Esposito; e O Abuso de Obediência do filosofo francês Fréderic Gros. O objetivo desta relação é caracterizar Foucault como um filosofo da concretude em oposição a abordagens filosóficas abstratas que tratariam erroneamente o homem como mero objeto.

Palavras-chaves: Foucault, Heidegger, concretude, racionalização, discursos de verdade.

1.                  INTRODUÇÃO

As relações entre filósofos sempre são difíceis de estabelecer e defender. Na verdade, o intuito do trabalho que se segue é muito menos de apontar similaridades pontuais entre dois filósofos tão distintos e que abordaram assuntos tão diversos, do que apresentar a importância de um estudo filosófico mais completo que tornar-nos-á interpretes mais competentes de nosso tempo. A partir de filósofos que são contemporâneos a nós, como Esposito e Gros, tentaria mostrar a validade do espírito heideggeriano na abordagem filosófica de Foucault. No entanto, não pretendo que o apelo para essas relações seja suprido por aqui, ao contrário, como esse trabalho é apenas fruto de uma intuição que ainda a de ser muito mais explorada futuramente, pretendo que o leitor o utilize muito mais como inspiração para futuras leituras, do que tome minhas impressões como verdades consumadas, que poderiam limitar sua análise.
           
2.                  Foucault, o filosofo da concretude

A questão levantada logo de início no texto O Sujeito e o Poder de Michel Foucault, contrariamente ao que normalmente poderíamos esperar deste autor, que sempre foi caracterizado pelo seu estudo do poder, é que seu trabalho não se concentrou, numa primeira abordagem, em analisar os fenômenos do poder, mas sim, em estudar como se dá a transformação de seres humanos em sujeitos (FOUCAULT, 1995, p.231). O termo ‘sujeito’ aqui pode ser mal interpretado, pois é comum ligarmos a noção de sujeito com alguém que está em oposição ao objeto. Não é o caso. Foucault trabalha com uma noção não muito usual, mas que aparentemente é mais apropriada ao termo, visto que, sujeito aqui é aquele que é sujeitado. O filosofo trata então da objetivação do sujeito, ou seja, o fato de tornarmos os seres humanos meros objetos de pesquisa. Aqui já implicaria uma caracterização inicial de uma certa abordagem de biopoder – o termo escolhido é as vezes tratado por Foucault como sinônimo de biopolítica, mas em geral diz respeito a qualquer exercício do poder que reduz a política a vida biológica –, visto que, a meu ver o fato de se tratar o homem como mero objeto de pesquisa, já o caracteriza como um ser apenas abstrato, isto é, um ser que não é nada além daquilo que representa enquanto objeto de uma investigação. Claro que irão dizer que apenas tornar seres humanos em sujeitos não caracteriza nada de biopoder, pois a mera investigação objetiva não é capaz de produzir medidas políticas que tratem o homem como mero ser biológico. No entanto, a meu ver, esse tratamento do tipo sujeito/objeto – no caso aqui o objeto é o próprio homem –, que se deu principalmente a partir da modernidade, e nisso espero que Foucault concorde comigo, já traz encoberto certa postura que faz com que homens tratem outros homens apenas como objeto, nunca como um igual. E é isso que quero afirmar aqui: a objetivação do sujeito é uma medida que pelo menos antecipa uma atitude de biopoder.
Gostaria de fazer aqui duas observações iniciais sobre dois filósofos distintos: a primeira a respeito de um pensador que me é muito caro: Heidegger; e a segunda é para enfatizar uma oposição a ele, enquanto representante de uma certa escola filosófica: via Esposito. Heidegger tem em sua abordagem hermenêutica uma repulsa aos termos sujeito e objeto. Para ele, nenhuma pesquisa poderia se inclinar para tal perspectiva, visto que seu existencial fundamental, o Ser-aí – o nosso ser, o ser do homem, o ser enquanto “abertura” –, é antes de tudo um ser-no-mundo, ou seja, somos, numa abordagem existencialista, primeiramente uma totalidade de remissões, em vista de um já sido, com inclinação para um por vir que se dá na abertura, com limitações, pois o limite é constituinte fundamente de nosso ser (HEIDEGGER, 2009, p.193-199). Essa condição não nos deixa capaz de caracterizar o homem como um sujeito em oposição a um objeto, pois trata dos entes do mundo (coisas) sob duas novas perspectivas: “à mão” e “diante da mão”. O “diante da mão” é o que mais se aproxima do termo ‘objeto’, pois é aquela perspectiva que temos das coisas somente quando as vemos fora de nossa mundanidade. Heidegger usa o exemplo do martelo para demonstrar seu “diante da mão”: o martelo é um “para-quê”, e ele só se apresenta a nós quando se quebra, pois não nos damos conta dele enquanto estamos a usá-lo. E é esse uso que é o “à mão” de Heidegger. Para esse autor existe um modo mais originário de tratar os entes, que é tratá-los enquanto utensílios, em sua manualidade. Esse tratamento é anterior até mesmo a proposição, mas nem por isso deixa de ser o mais importante a ser trabalhado (HEIDEGGER, 2009, p.202-209). A questão, a partir de Heidegger, que quero propor, e aqui acredito que mais uma vez Foucault concordaria comigo, é a seguinte: o homem não pode ser nem tratado como um ente “à mão” e muito menos “diante da mão” (objeto), isso se se quiser fazer um estudo com mais propriedade dele. Seria até contraditório fazer isso, pois somos apenas o existencial fundamental (ser-ai), ou seja, não somos nada além disso, de um ser-no-mundo, isto é, nossa existência não está fundado em “para-quês”, como um utensílio; na verdade a conclusão de Heidegger é que ela não está fundada em nada.
Como havia a antecipado, a oposição a Heidegger se dará via Esposito, que em seu texto Totalitarismo ou biopolitica usa Heidegger como um dos expoentes de uma abordagem filosófica que caracteriza a história enquanto filosofia da história, em oposição aqueles que trataram, mais recentemente, de abordar a história como sendo história das filosofias (ESPOSITO, 2008-2009), e aqui incluo, por minha conta, Foucault como um dos expoentes. O que Esposito explicita aqui, é que Heidegger é um dos que tenta adaptar as mudanças históricas de tal modo que se enquadrem a seu construto teórico-filosofico (ESPOSITO, 2008-2009). Mesmo com o desejo de ficar a parte de uma discussão se Heidegger é ou não é um desses filósofos da abstração, quero atentar para o fato de que ele, ao contrário, sempre afirmou a concretude e se construtos teóricos tem alguma validade para este alemão é apenas enquanto teoria, nunca como uma representação da realidade. A margem de opiniões um tanto quanto parciais, quero ressaltar a validade de Esposito, no que diz respeito a sua interpretação dessa oposição, pois para ele os conflitos modernos se dão em vista de um choque de correntes filosóficas que querem se afirmar como superiores umas as outras; e nisso não posso discordar. Além disso, filósofos como Foucault não se perguntam mais sobre as origens dos fenômenos, tal como fez Hannah Arendt, mas sim, os vêem entrelaçados por diversos fatores, dos quais não somos mais capazes de desatar os nós para podermos visualizamos as origens e a sequência da história tal como ela se deu de fato (ESPOSITO, 2008-2009). Esse ‘de fato’ já é em si uma abstração, pois somos sempre interpretes de nosso tempo, lemos a história com critério, mas de tal modo que ele faça sentido para nós no nosso tempo e no nosso mundo. Essa atitude é antes de tudo hermenêutica, pois afirma a inter-relação e a inter-determinação, afirma também o diálogo, e é só em vista dessa concretude, nunca da abstração sujeito/objeto, que podemos entender os fenômenos que falam do homem, com mais propriedade. Aqui vemos que há uma leve retomada de Heidegger, pois mesmo ele, nunca tratou as coisas de dizem respeito a ação humana como mero objeto.
Mais uma vez gostaria de tocar no nome de Heidegger para tentar elucidar uma questão de Foucault. Na verdade a questão foi levantada por Gros, em seu texto em homenagem ao aniversário de 20 anos da morte de Foucault: O abuso da obediência. Heidegger ao tratar o homem antes de tudo como ser-ai, nos fornece a seguinte premissa: se somos apenas esse existencial fundamental e nada justifica nossa existência logo de saída, então não temos pressupostos essencialistas que sustentem ou que tentem afirmar modos de ser e de agir. O que isso quer dizer: não temos necessariamente de obedecer pretensos discursos de verdade, pois nada é verdadeiro a priori, a verdade só se dá no fato. E mais ainda, discursos que comumente são ouvidos, tais os de religião, ou mesmo de filosofia essencialista, nada tem a nos dizer que de fato precisamos ouvir. Gros ressalta que foram a partir desses discursos de verdade, ou melhor, de nossa vocação (aqui vocação não como uma essência do ser, mas como uma certa atitude conformista e até mesmo fatalista) para a aceitação da tais discursos que tornamo-nos seres que obedecem sem o menor pudor; e isso a meu ver é vergonhoso, dado a premissa heideggeriana. Além disso, é nessa atitude abusiva, tanto dos que mandam, quanto dos que obedecem, que são criados construtos que visão inventar a história do próprio homem (GROS, 2004), e também construtos que tornam os seres humanos sujeitos, ou seja, objetivam sujeitos.
Agora posso retomar o texto Sujeito e Poder; o intuito aqui é afirmar neste texto as perspectivas levantadas acima sobre a filosofia de Foucault, e não fazer uma resenha deste texto. Foucault mostra como são feitas tais objetivações: a partir de uma visão cientificista; em vista de “práticas divisórias” do sujeito – por exemplo: doente e sadio, louco e são, etc –; e por último, a abordagem do sujeito de sexualidade (FOUCAULT, 1995, p.232). A questão é que todas essas formas de objetivação são em última instância racionalizações de nossa existência, ou seja, são abstrações de nosso ser, ou melhor, refletem pretensos discursos de verdade. Importante apontar sobre o estudo de Foucault realizado nos últimos anos, a saber, A História da Sexualidade, que mesmo este trata da sujeição do homem a discursos sobre sexo, pois só a partir destes discursos que se pode falar em sexualidade. Sexo sem discurso não é sexualidade. Desejo lembrar aqui que os discursos sobre sexo são, em geral, na nossa sociedade contemporânea, voltados para o biopoder, e até mesmo para biopolítica, pois falam de como devemos nos comportar diante de sexo, como por exemplo, no uso de preservativos. É, portanto ressaltando essa atitude de objetivação que Foucault tomou a questão do poder. O problema aqui é o seguinte: as formas de objetivação do sujeito são estudas a partir de instrumentos específicos, mas para o poder não há instrumentos; para o poder é necessário, segundo Foucault, e a meu ver com acerto, apelar à concretude, ao contrário da abordagem racionalista típica dos que objetivam o sujeito, ou seja, o autor quer perguntar o que legitima o poder e como ele se dá como instituição em nossa sociedade, ou seja, quer saber o que é o Estado (FOUCAULT, 1995, p.232). Mais uma vez vejo relação entre Foucault e Heidegger, visto que o apelo aqui não é a fundamentação teórica num sentido formalista, mas uma visão hermenêutica que trata das coisas do mundo concreto. O sentido hermenêutico é explicitado no texto de Foucault quando ele lembra a necessidade de tomarmos consciência histórica para a conceituação (FOUCAULT, 1995, p.232), pois conceituar algo não é mera abstração a partir de um plano imutável e perene; toda hermenêutica visa um dialogo com o passado no sentido de realizar uma fusão de horizontes, essa fusão é sempre uma aplicação no campo concreto a partir da interpretação, com a apreensão do passado em vista do presente. Além disso, Foucault lembra que toda questão do poder é antes de tudo uma experiência concreta, uma experiência do homem, ou seja, não é uma questão de caráter meramente teórico.
Por fim, algo que desejo ressaltar é a definição do papel da filosofia para Foucault, em vista de analisar o problema da razão. O autor afirma que a filosofia deve vigiar os excessivos poderes da racionalidade política. Pois bem, ao estudarmos o poder devemos lembrar-nos da sua estrita relação com a racionalização. Foucault acertadamente, e afirmando as questões levantadas acima, apresenta a razão como não sendo objeto de culpa ou inocência (FOUCAULT, 1995, p.233). As razões para essa decisão são obvias, pois somos antes de tudo seres dotados de razão – razão aqui não é a capacidade de discernir, mas apenas nossa condição cognitiva (e nisso Heidegger concordaria) –, e além disso, não queremos cair no binômio, racionalista e irracionalista (FOUCAULT, 1995, p.233) – essa abordagem em si implica uma abstração que não queremos tomar. Para Foucault a filosofia já trilhou essa caminho errado antes, como por exemplo ao analisar o Iluminismo enquanto origem de fenômenos totalitários contemporâneos, como fez a escola de Frankfurt; no entanto, no entanto o filosofo não desmerece estes trabalhos (FOUCAULT, 1995, p.233), ao modo heideggeriano de tomá-los como meros construtos teóricos. Aqui atentar para a relação desta perspectiva frankfurtiana com a já supracitada oposição levanta por Esposito: esses filósofos concentram-se em descobrir as origens de seus problemas. Foucault, ao contrário, dado sua abordagem concreta, nunca tomaria a racionalização como um todo, mas sempre a partir de experiências concretas fundamentais, por exemplo: loucura, morte, crime, etc (FOUCAULT, 1995, p.233). Ou mesmo, mantendo-se fiel as suas tendências já levantadas, estudar o poder a partir de fenômenos de resistência (FOUCAULT, 1995, p.234). O importante aqui, e é isso que venho ressaltar, é que a abordagem foucaultiana antes tudo visa construir projetos hermenêuticos que se relacionam concretamente, com a realidade de nosso tempo, e nunca a partir de uma abstração que nada tenha a ver com nosso mundo.

3.                  CONCLUSÃO

Acredito que na medida do possível, dado a limitação física do texto, consegui ressaltar relações entre a abordagem filosófica de Foucault e a abordagem filosófica de Heidegger. A questão, como apresentado na introdução, não foi apenas destacar pontos em comum entre os dois, mas antes de tudo, mostrar que apreensão das similaridades a partir da explicitação dos traços fundamentais de cada um, tornar-nos-á capazes de desenvolver um estudo sistemático da filosofia de forma mais completa, e assim compreenderemos melhor o tempo de cada filosofo em específico e por fim nosso próprio tempo. Em relação ao texto, o importante para mim foi ressaltar que a abordagem foucaultiana, antes tudo, visa construir estudos hermenêuticos que se relacionam concretamente com o mundo, com a realidade de nosso tempo, e nunca a partir de uma abstração que nada tenha a ver com o lugar e o tempo em que vivemos.

4.                  referencias bibliográficas

GROS, Fréderic. L’abus d’obéissance. Em: Libération, 19 e 20 de junho de 2004. Paris, Caderno intitulado Le feu Foucault, p. XI. Trad. Portuguesa Selvino J. Assmann.

FOUCAULT, Michel. O Sujeito e o Poder. Rio de Janeiro: Forense Universitário, 1995.

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 2009.

ESPOSITO, Roberto. Totalitarismo o Biopolitica: Per un’interpretazione filosofica Del Novecento In: Termini Del política. Comunità, immunità, biopolitica. Milano-Udine, Mimesis Edizioni, 2008-2009, p.171-81. Trad. Portuguesa de Selvino J. Assmann.

Um comentário:

  1. Se bem entendi o texto, o poder estaria relacionado à imposição ao homem de modos de agir em determinadas situações, é isso?

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